03/05/2008

Motivação

D.D apresenta-se sempre impecavelmente arrumada. Dos pés à cabeça. Literalmente. Ao cabelo dá-lhe uma aparência de casulo de bicho da seda. Muito leve, muito branco, muito artisticamente tecido. O corpo, direito, sobriamente vestido, caminha sobre uns pés que, apesar dos 80 anos recentemente festejados, não admitem calçado que não tenha pelo menos 3 cm de altura de salto.
D. D sai todos os dias de casa. De manhã. Toma o pequeno almoço na pastelaria. Com uma amiga. Há mais de 40 anos. Sempre com a mesma amiga. Sempre na mesma pastelaria. Enquanto trabalhadora por conta de outrem e por um número de horas diárias que saíam da conta estipulada por lei, era aquela ida à pastelaria o seu único luxo. Reformada, passou a ser uma questão de coerência vital e de sanidade mental.
De volta a casa, D. D não sai mais. Assim, por volta das 11h e até às 24h ou mais, D.D entretém-se por ali, sozinha, a ler revistas cor de rosa, a fazer crochet, a ver TV, a ingerir uns alimentos, meio à pressa, sem horas marcadas e a dormitar no sofá quando calha. Quando o cansaço do dia se sente no coração e o corpo, sem que se dê conta, inicia o modo de descanso e desliga para se poupar.

D.D não se queixa, não se lamenta, não diz mal de ninguém e não tem paciência para conversas ocas. Não lamenta a vida que teve, apesar das dificuldades e não se arrepende das suas opções. Mantêm-se activa, ocupada, interessada. Cuida de si. Sempre cuidou de si.
Vive só. Nunca casou. Só casaria por amor. E não deixou que lhe fizessem o ninho no beiral . Nem nunca encontrou andorinha que a fizesse voar e desafiar o espaço em pontas, a preto e branco. E mais tarde pintar a manta da vida, multicolor. Não se importou. A vida foi caminhando elegantemente arrumada, sobriamente decorada e estoicamente organizada.

Recentemente sofreu um revés. Volta e meia vejo-a mais cabisbaixa. Recusa ir ao médico. Confirma que está tudo bem e eu desconfio.
É que aos poucos vou sentindo que a D.D me quer mais vezes, de visita, lá em casa. E quando lá vou, estranha cada vez mais "o pouco" tempo que lá estive.
D. D não se queixa, nem pede nada. Só me espera à janela, quando chego do trabalho. E diz-me bom-dia, todos os dias, do alto da sua janela, sorrindo.

Desconfio que precisa de cuidar de mim para continuar a ser capaz de cuidar de si.

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