11/05/2008

Famíla forte

Quase no fim de um dia cheio de trabalho em que tive de alterar a ordem que me rodeia.... Um daqueles dias em que as memórias se reorganizam porque não só mudamos o lugar das coisas como ainda seleccionamos, separamos, rasgamos e reciclamos o que já tantas vezes foi alvo de selecção. As estantes, os livros, os papéis, a tralha toda que se acumula durante anos.
Já sem energia e realmente muito cansada, lançava ao lixo mais um dos muitos cadernos que utilizei há muitos anos para fazer apontamentos para os exames e de que nunca tinha tido coragem de me desfazer, até hoje. Lançava, porque não lancei. Ainda hesitante, folheei mais uma vez o caderno tentando decidir se o conteúdo me viria, mais dia , menos dia, a ser necessário. E foi ao dar esta última volta que me encontrei com a letra ainda infantil do meu filho, a lápis. E antes que a minha memória se esqueça do que hoje vi e que daqui a uns anos eu acabe realmente por deitar fora o caderno, aqui fica uma definição original:

Eu e a Família


Sou eu e a minha mãe

mãe que tem sete irmãos

irmãos que são meus tios

tios que têm filhos

filhos que são meus primos

primos que são meus amigos

amigos há aqueles que são quase família

família são também os avós

Avô que conta histórias

histórias divertidas que são o contrário da avó

que é aborrecida!

Aborrecida como a vida

Vida grande

Grande é o meu pai

pai que tem pais que são divertidos

divertidos são o tio e a tia

tia que tem filhas

filhas minhas primas

primas do meu primo e prima

primo e prima que são filhos do meu tio

tio que tem um aperto de mão forte

forte que é a minha família!


Francisco (algures pelo fim da infância...)


03/05/2008

Motivação

D.D apresenta-se sempre impecavelmente arrumada. Dos pés à cabeça. Literalmente. Ao cabelo dá-lhe uma aparência de casulo de bicho da seda. Muito leve, muito branco, muito artisticamente tecido. O corpo, direito, sobriamente vestido, caminha sobre uns pés que, apesar dos 80 anos recentemente festejados, não admitem calçado que não tenha pelo menos 3 cm de altura de salto.
D. D sai todos os dias de casa. De manhã. Toma o pequeno almoço na pastelaria. Com uma amiga. Há mais de 40 anos. Sempre com a mesma amiga. Sempre na mesma pastelaria. Enquanto trabalhadora por conta de outrem e por um número de horas diárias que saíam da conta estipulada por lei, era aquela ida à pastelaria o seu único luxo. Reformada, passou a ser uma questão de coerência vital e de sanidade mental.
De volta a casa, D. D não sai mais. Assim, por volta das 11h e até às 24h ou mais, D.D entretém-se por ali, sozinha, a ler revistas cor de rosa, a fazer crochet, a ver TV, a ingerir uns alimentos, meio à pressa, sem horas marcadas e a dormitar no sofá quando calha. Quando o cansaço do dia se sente no coração e o corpo, sem que se dê conta, inicia o modo de descanso e desliga para se poupar.

D.D não se queixa, não se lamenta, não diz mal de ninguém e não tem paciência para conversas ocas. Não lamenta a vida que teve, apesar das dificuldades e não se arrepende das suas opções. Mantêm-se activa, ocupada, interessada. Cuida de si. Sempre cuidou de si.
Vive só. Nunca casou. Só casaria por amor. E não deixou que lhe fizessem o ninho no beiral . Nem nunca encontrou andorinha que a fizesse voar e desafiar o espaço em pontas, a preto e branco. E mais tarde pintar a manta da vida, multicolor. Não se importou. A vida foi caminhando elegantemente arrumada, sobriamente decorada e estoicamente organizada.

Recentemente sofreu um revés. Volta e meia vejo-a mais cabisbaixa. Recusa ir ao médico. Confirma que está tudo bem e eu desconfio.
É que aos poucos vou sentindo que a D.D me quer mais vezes, de visita, lá em casa. E quando lá vou, estranha cada vez mais "o pouco" tempo que lá estive.
D. D não se queixa, nem pede nada. Só me espera à janela, quando chego do trabalho. E diz-me bom-dia, todos os dias, do alto da sua janela, sorrindo.

Desconfio que precisa de cuidar de mim para continuar a ser capaz de cuidar de si.